Além de consultas individuais, esses especialistas desempenham um papel essencial nas equipes técnicas dos clubes. Dos 20 times da elite do futebol brasileiro, 12 contam com esses profissionais em seus quadros. O Cruzeiro e o São Paulo possuem departamentos dedicados, mas ainda buscam novos especialistas.
*Michele Rios já atuava no clube. Patrício Morales foi integrado à equipe de Gabriel Milito.
A presença da psicologia nas comissões técnicas vem ganhando destaque progressivamente. Conforme explica Andreia Cardoso, especialista em Psicologia do Esporte voltada para o alto rendimento, existem duas abordagens distintas:
Os profissionais trabalham no sentido de “maximizar o desempenho esportivo dos atletas” e também para oferecer suporte e assistência individual, especialmente no contexto do futebol.
– O papel do psicólogo nos clubes envolve participar das rotinas de treinamento. É essencial que tenha espaço para dialogar e explicar sua abordagem de trabalho, buscando que tanto a comissão técnica quanto os jogadores vejam essa assistência como mais uma ferramenta auxiliar na performance.
A presença de especialistas dessa área nas comissões técnicas é um fenômeno relativamente recente e ainda pouco comum. Cardoso destaca que o trabalho de promover a saúde mental dos atletas complementa as demais áreas de atuação, sendo uma ferramenta crucial para alcançar a excelência, em conjunto com aspectos como fisiologia, fisioterapia e preparação física.
No entanto, a atuação desses profissionais no futebol ainda carece de clareza. Fernando Diniz, um dos principais técnicos do futebol brasileiro e também adepto desse tipo de abordagem, ressalta a importância do acompanhamento nos clubes, porém salienta que as questões essenciais devem ser tratadas pelos atletas fora do ambiente do centro de treinamento.
– Considero extremamente relevante, porém deve ser algo mais aprofundado e tratado com seriedade. Talvez o psicólogo no clube de futebol tenha a função de identificar problemas e encaminhar para profissionais adequados. Acredito ser muito difícil que o psicólogo no ambiente do clube consiga realizar terapias. Creio que o ideal é proporcionar um acolhimento inicial e então encaminhar para espaços externos ao clube, possibilitando que o jogador desenvolva um acompanhamento mais aprofundado.
Muitas pessoas ainda precisam superar os preconceitos ainda presentes no meio futebolístico, os quais dificultam a aceitação por parte dos jogadores em buscar acompanhamento psicológico para promover a reorganização emocional. Isso representaria um grande avanço.
— Fernando Diniz
Dentre os clubes que não mantêm um psicólogo em suas comissões técnicas, há abordagens diversas para cuidar da saúde mental dos atletas.
No Flamengo, por exemplo, não há um profissional presente rotineiramente, porém o clube conta com psicólogos parceiros – contratados como prestadores de serviço -, aos quais encaminha os jogadores quando necessário. Um caso recente ocorreu com Michael, atualmente no Al Hilal.
O processo inicia-se no departamento médico. Quando os profissionais dessa área identificam demandas por parte dos jogadores, acionam esses prestadores para realizar o atendimento adequado.
A situação no São Paulo é um tanto distinta. Embora disponha de um departamento de psicologia, o clube perdeu seu profissional para o Corinthians no início do ano, e encontra-se em busca de um novo psicólogo. Internamente, o Tricolor reconhece a importância da área e destaca o auxílio recebido por Alisson em 2023 para superar um quadro de depressão.
O CEO do Fortaleza, Marcelo Paz, destaca a presença do psicólogo no futebol como “altamente relevante”, não apenas no meio esportivo, mas em todos os setores da sociedade. Ele ressalta que, devido à exposição constante, ter suporte para lidar com as pressões é crucial dentro do elenco.
Conforme Paz, o psicólogo que atua no Leão do Pici está presente diariamente em todas as atividades, oferecendo atendimento individual aos jogadores, cujos nomes são mantidos em sigilo em respeito à ética profissional.
Recentemente, o clube enfrentou um episódio marcante no atentado ao ônibus após uma partida contra o Sport pela Copa do Nordeste. O dirigente enfatizou o papel do profissional na ajuda aos atletas e suas famílias após o incidente.
– Nosso psicólogo esteve à disposição para auxiliar não apenas os jogadores, mas também suas famílias. Para lidar com essa situação traumática e preservar o bem-estar, harmonia, alegria de atuar e a performance. No futebol, somos cobrados constantemente por desempenho, e mesmo diante do ocorrido, não podemos descuidar desse aspecto.
O diretor de futebol do Fluminense, Paulo Angioni, vai além. Para o dirigente, todos os clubes deveriam contar com um setor dedicado à psicologia, visando proporcionar um atendimento mais abrangente, integrando as duas áreas da saúde mental.
Essa foi a iniciativa adotada pelo Vasco recentemente. O clube estabeleceu um “Núcleo de Psicoterapia Integrada” que conta com a presença tanto de um psicólogo quanto de um psiquiatra. A inspiração veio das franquias da NFL, principal liga de futebol americano nos Estados Unidos.
Aspectos da carreira do jogador
Na visão do atacante André Felipe, recém-contratado pelo América-RJ e com passagem por grandes clubes da Série A do Brasileirão, o acompanhamento psicológico é essencial na trajetória de um atleta de alta performance.
Ele enfrentou um período desafiador ao deixar o Santos, em 2010, para transferir-se ao Dinamo de Kiev, na Ucrânia. Diante de um contexto esportivo e cultural muito distinto, ele recorreu à terapia.
– Nos dias atuais, essa questão é ainda mais relevante devido às redes sociais e toda a exposição gerada. As pessoas fazem comentários ao vivo e, muitas vezes, propagam ódio. Todos os jogadores precisam se blindar contra isso. Acaba-se por acreditar que as avaliações nas redes são verídicas e se perde de vista o próprio valor, a luta diária e o trabalho.
O atleta de alto rendimento deve estar bem mentalmente. Este é um dos pilares fundamentais. Não adianta estar em boa forma física e negligenciar o aspecto psicológico
— André Felipe
Alguns clubes têm psicólogos atendendo em momentos específicos de alta pressão, como em lutas contra rebaixamento ou em disputa por um título. Contudo, André ressalta a importância de uma atenção cotidiana.
– Muitas pessoas não percebem que o atleta pode não estar bem em casa, o que acaba afetando seu rendimento. Ter um psicólogo que identifica e dialoga com o jogador é crucial. Todo clube deveria, de fato, contar com esse suporte. É essencial compreender que o atleta não é uma máquina.
A mente do jogador de futebol representa 80% de seu desempenho. É possível observar que alguns jogadores, quando estão confiantes, tornam-se outros em campo. Ninguém esquece como jogar. O psicólogo contribui para equilibrar o físico e o mental
— André Felipe
Impacto na conquista da Libertadores
O Fluminense é um dos clubes que dispõem de um especialista em psicologia na comissão técnica. Emily Gonçalves ganhou destaque após um episódio na final da Conmebol Libertadores de 2023. Poucos minutos após a conquista do título, Jhon Arias abraçou a psicóloga e agradeceu pelo trabalho realizado no clube.
– Minha avó queria muito que eu estivesse aqui, e estou feliz por isso. Então, é por ela, por meu avô… Estamos marcando a história e sei que ainda há mais por vir. Obrigado por tudo. Você é parte do que sou hoje.
Emily atua com o time profissional do Tricolor desde 2018, mas sua chegada ao clube deu-se antes, para auxiliar no desenvolvimento dos jogadores no centro de treinamento da base, em Xérem.
Integrada à comissão técnica, o trabalho da psicóloga é constante e bastante distinto de uma abordagem clínica em consultório. Ela está presente no cotidiano do elenco, buscando ser encarada como parte do grupo de trabalho.
Diariamente, os jogadores respondem a um questionário de saúde que gera um relatório para os profissionais. A partir desses dados, ela analisa as informações e dialoga com os demais departamentos para propor possíveis intervenções.
– Dependendo da situação, quando os jogadores apontam áreas a melhorar, traçamos um plano de ação para desenvolver habilidades, superar dificuldades ou lidar com situações adversas, sejam internas ou externas – explica Emily.
A abordagem diária visa, acima de tudo, compreender como o jogador se sente, ao invés de focar naquilo que está ausente. Trata-se de acolher mais do que questionar em situações adversas.
— Emily Gonçalves
Em entrevista ao ge, Emily ressaltou a importância da continuidade para o progresso do trabalho de um psicólogo dentro de um clube de futebol, algo que não seria viável por meio de intervenções pontuais.
O foco do atendimento ao grupo de atletas visa prepará-los para lidar com pressões e cobranças, ao mesmo tempo em que conhecem seus limites e compreendem plenamente as mensagens transmitidas pelo clube.
– Por exemplo, durante reuniões, como a do Diniz. Estou atenta ao que ele quer comunicar, mas pode acontecer de um atleta interpretar de maneira equivocada. Nesses momentos, eu o faço refletir, como: “O que você entendeu disso?” Dessa forma, no ambiente cotidiano, é mais fácil auxiliar na compreensão da mensagem e no desenvolvimento do atleta.
Com a atuação direta do psicólogo no dia a dia e sua integração à comissão técnica, a saúde mental passa a ocupar um lugar de destaque nos clubes. Assim, assim como na sociedade em geral, a busca por um equilíbrio mental deixa de ser um tabu para se tornar um fator primordial no desenvolvimento dos atletas.
Fonte: ge