A Réplica Histórica representa um marco para o Vasco e para o futebol nacional, simbolizando a luta contra o preconceito no esporte. Comemorada pelo clube e por sua torcida ano após ano, o documento completa cem anos neste domingo.
No entanto, poucos sabem que houve uma contraréplica à “Réplica Histórica” do Vasco. Disponível no Acervo Digital da Biblioteca Nacional, publicada no jornal “O Paiz”, em 19 de abril de 1924, a resposta foi redigida por Arnaldo Guinle, líder da comissão organizadora da AMEA e apoiador do Fluminense.
O texto rebate item por item a carta enviada pelo Vasco e, ao final, expressa a esperança de que o clube, fundado por imigrantes portugueses, forme uma equipe “autenticamente portuguesa”, destacando que não há outra comunidade capaz de apresentar as “qualidades dessa nobre raça secular.”
— Por fim, afirmamos a Vossa Excelência que, embora estivéssemos prontos para atender às solicitações de seu clube a respeito deste tema, nutríamos a expectativa de que, no futuro, ele se esforçasse para formar equipes autenticamente portuguesas, pois, em nossa visão, não há outra comunidade em nosso meio capaz de apresentar elementos melhores do que os portugueses para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades dessa nobre raça secular — escreveu Arnaldo Guinle a José Augusto Prestes.
Após o Vasco conquistar o Campeonato Carioca de 1923, em seu primeiro ano na elite carioca, com uma equipe composta majoritariamente por negros e pessoas de classes populares, América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense romperam com a Liga Metropolitana e se uniram para fundar a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA).
A AMEA aceitou a entrada do Vasco sob a condição de que o clube dispensasse 12 de seus jogadores, sendo sete do time titular e cinco da equipe reserva. Em sua maioria, os atletas eram negros e faziam parte das camadas menos privilegiadas da sociedade. Essa decisão colocou o Vasco, então campeão carioca, em desvantagem em relação aos fundadores da nova liga.
Um trecho do estudo “História das Ligas e Federações do Rio de Janeiro (1905-1941)”, descoberto por uma equipe de pesquisa da FAPERJ, liderada por Luís Manuel Fernandes, revela o estatuto da AMEA e todas as suas restrições para manter o futebol como esporte elitizado.
O Vasco se negou a dispensar seus jogadores e redigiu a Réplica Histórica em 7 de abril de 1923. No ano passado, no aniversário de 99 anos da carta, o Centro de Memória do clube preparou um arquivo digital com diversos elementos sobre o feito do Vasco, inclusive com o documento redigido por Arnaldo Guinle.
No arquivo digital, o Vasco destaca que esta parte da réplica da AMEA revela um preconceito explícito com o clube, que era visto como exclusivamente português, sem negros, e que os dirigentes tinham interesse em rotular o Cruzmaltino como um oponente das equipes brasileiras.
— Houve o interesse de que o Vasco da Gama formasse equipes compostas apenas por portugueses, à semelhança de clubes como o Luzitania Sport Club. Assim, do confronto esportivo entre esse Vasco, que os dirigentes da AMEA desejavam com os grandes clubes da época (que formavam suas equipes apenas com homens brancos), dentro de uma concepção racista, emergiria a raça vencedora: portuguesa ou “brasileira”.
Ademais, esse trecho da réplica da AMEA evidencia a intenção de delimitar o Vasco como um clube exclusivamente português, sem negros, e o interesse dos dirigentes da nova liga em estigmatizá-lo como um estrangeiro indesejado, que ia de encontro aos “legítimos clubes brasileiros” — cita o documento disponível no site do Vasco.
Há cem anos, o cenário social e histórico do Brasil era outro. Contudo, a pesquisa revelou que, com o tempo, alguns veículos de imprensa se posicionaram contra os princípios da AMEA. No entanto, a maioria dos artigos se limitou a noticiar, sem aprofundar, a recusa do Vasco.
Confira a resposta da AMEA à “Réplica Histórica”
Rio de Janeiro, 17 de abril de 1924.
Excelentíssimo Senhor José Augusto Prestes,
Ao receber o ofício de seu clube, datado de 9 do corrente, que nos foi entregue em 11, aproveitamos esta oportunidade para fazer algumas considerações sobre o que ali é mencionado a respeito do nosso primeiro e único encontro com Vossa Excelência.
No que se refere ao primeiro parágrafo, é importante mencionar que as resoluções divulgadas pela imprensa não poderiam ter sido apresentadas a Vossa Senhoria por meio de leituras jornalísticas, pois, durante o encontro mencionado, tivemos acesso ao documento na íntegra, o qual foi posteriormente publicado, após o que fornecemos todas as explicações necessárias. Portanto, não houve, como aparenta-se dessa parte do seu ofício, omissão de informações que, uma vez conhecidas, pudessem alterar a postura do Club de Regatas Vasco da Gama.
Quanto ao segundo parágrafo, é necessário observar que a estruturação da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos já era de seu conhecimento antes da solicitação de filiação deste clube, datada de 15 de março último, visto que os estatutos existentes são praticamente os mesmos que foram apresentados à Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, cujos detalhes foram discutidos por Vossa Excelência dentro daquela instituição.
Nesse projeto, os direitos dos clubes, atualmente fundadores da AMEA, não eram os mesmos concedidos ao clube dirigido por Vossa Senhoria. Por esse motivo, causou-nos surpresa a leitura do segundo parágrafo do mencionado ofício, cujo entendimento nos pareceu bastante tardio.
No que se refere ao terceiro parágrafo, o Club de Regatas Vasco da Gama incorre em um equívoco evidente, visto que a Comissão Organizadora jamais poderia negar a qualquer pessoa o direito de defesa, fato este que foi expressamente declarado a Vossa Excelência pelo signatário deste ofício.
Informamos, então, que, uma vez filiado, o Club de Regatas Vasco da Gama apresentaria um novo ofício, comprovando que seus jogadores atendem a todas as condições legais de amadorismo, e, após a comprovação da improcedência da sindicância realizada pela AMEA, as respectivas inscrições seriam concedidas. Acrescentamos que, caso houvesse, naquele momento, divergências entre as informações prestadas por este clube e a investigação por nós realizada, a responsabilidade decorrente recairia exclusivamente sobre o Club de Regatas Vasco da Gama, conforme ocorreu com os demais clubes, o que impossibilitava a discussão de todos esses casos específicos naquele momento, devido à proximidade do início dos campeonatos oficiais da temporada esportiva em curso.
Acreditamos que seria mais adequado, portanto, organizar a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos para, em seguida, tratar desses casos particulares.
Por fim, reiteramos que, embora estivéssemos prontos para atender às demandas de seu clube a esse respeito, nutríamos a expectativa de que, no futuro, este envidasse todos os esforços para formar equipes autenticamente portuguesas, uma vez que, em nossa visão, não havia outra comunidade em nosso meio capaz de apresentar elementos superiores aos portugueses para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades dessa nobre raça secular.
Ao que Vossa Senhoria respondeu que isso não seria possível, visto que o regime de trabalho pesado do comércio português não permitia que seus funcionários abandonassem suas ocupações para se dedicar à preparação necessária para os jogos dos campeonatos oficiais da AMEA.
Por isso, Senhor Presidente, ao tomar conhecimento do ofício de Vossa Excelência, datado de 9 do corrente, lamentamos que a boa receptividade de nossos conceitos por parte de Vossa Senhoria não tenha se traduzido posteriormente em uma ação solidária de seu clube para com aqueles que, nas primeiras horas de atividade nos esportes terrestres desse valoroso grupo, estenderam a mão para, sob esse espírito de boa vontade, simpatia e solicitude, crescer em seu respeito e consideração.
Permita-me, sem mais delongas, subscrever-me com toda a consideração e estima, seu criado, atento e grato.
Arnaldo Guinle, presidente da Comissão Organizadora.
Fonte: ge