A conexão entre o Vasco e o Olympique de Marselha está em evidência, mas não começou com Dimitri Payet. O meio-campista francês, que se tornou ídolo da maior torcida do seu país, pode se inspirar no sucesso de um dos maiores goleiros da história do Vasco para repetir o feito no Rio de Janeiro. Há mais de 90 anos, Jaguaré se tornou uma lenda histórica do Vasco e também foi ídolo em Marselha.
A história de Jaguaré Bezerra de Vasconcelos, conhecido como Jaguaré, se mistura com a do Vasco da Gama. O carioca, nascido em 1905, é considerado um dos pioneiros entre os goleiros a utilizar luvas no Brasil e o primeiro a marcar um gol entre jogadores da mesma posição no país. Além disso, ele foi o primeiro convocado do Vasco para a Seleção Brasileira. Saiba mais sobre o goleiro na reportagem a seguir.
Origem
Nascido em maio de 1905, Jaguaré trabalhava como estivador antes de ingressar no futebol do Vasco. O goleiro exercia sua função no cais do porto do Rio de Janeiro, até ser descoberto por Espanhol, zagueiro do clube, que o conhecia da equipe Pereira Passos. Jaguaré tinha a habilidade de carregar sacos de 50 quilos com uma mão e fazer malabarismos com eles, demonstrando leveza e alegria que também trazia para o campo.
Jaguaré chamou a atenção de todos devido à sua irreverência e evidente qualidade debaixo das traves. No campo, o goleiro brincalhão dribleva os adversários, defendia, acertava os rivais com a bola para desconcentrá-los e até marcava gols. A torcida o adorava.
“Walfare (técnico do Vasco), britânico até o âmago, não pôde deixar de elogiar a habilidade de Jaguaré no gol. Ele disse: ‘Este é o arqueiro que trará vitórias para o Vasco. Ele trará, acima de tudo, confiança à equipe. Será perigoso por causa de sua maestria, mas nos dará muitas satisfações'”, escreveu Geraldo Romualdo da Silva em um obituário publicado no Jornal dos Sports em 1946.
Jaguaré foi convidado para treinar com a equipe do Vasco e estreou pelo clube em 1928, no mesmo ano em que se tornou titular da seleção brasileira, substituindo Amado, o goleiro do Flamengo. Dessa forma, ele se tornou o primeiro jogador do Vasco a defender a seleção.
– Até hoje, não houve uma pessoa no futebol que tenha gerado tantas anedotas quanto Jaguaré. Com toda a sua sabedoria, com toda a sua ignorância das coisas mais simples, ele conseguia ser uma pessoa fabulosa pela facilidade de transformar uma tragédia em algo cômico – publicou Geraldo.
O goleiro fez parte de um dos melhores times do Vasco, que atuou no final da década de 20 e início da década de 30. Em 1929, ele foi campeão estadual e também esteve presente na maior goleada da história do clássico contra o Flamengo: o surpreendente placar de 7 a 0 em 1931, com quatro gols de Russinho, dois de Mário Mattos e um de Sant’Anna.
Carreira no Barcelona
No mesmo ano em que ocorreu a maior goleada no “Clássico dos Milhões”, o Vasco fez sua primeira turnê pela Europa, onde Jaguaré chamou a atenção ao enfrentar o Barcelona, da Espanha. O time catalão ficou encantado com as atuações do goleiro e de Fausto, conhecido como a “maravilha negra”, nos dois amistosos e ofereceu contratos aos jogadores. Deslumbrados com o profissionalismo, eles foram para o Velho Continente.
Os dois jogadores do Vasco se tornaram os primeiros brasileiros a atuarem pelo Barcelona. Com as chegadas de Fausto e Jaguaré, as expectativas foram correspondidas e os jogadores foram considerados grandes contratações do Barcelona por Samitier, um dos maiores jogadores da história do clube catalão, apelidado de “Deus do futebol espanhol”.
Leia as matérias de O Globo na época
No entanto, em seis meses no Barcelona, Jaguaré não conseguiu jogar regularmente por ser estrangeiro. De acordo com o L’Équipe, o maior jornal da França, o time catalão pediu que Jaguaré se naturalizasse para substituir o lendário goleiro Zamora, mas ele preferiu voltar ao Brasil, onde defendeu o Corinthians. Foi em 1934 que ele se tornou pioneiro ao ser o primeiro goleiro a usar luvas no Brasil.
Carreira no Olympique de Marselha
Jaguaré chegou ao Olympique de Marselha em 1936, determinado a retornar à Europa. Ele foi o primeiro brasileiro da história do clube e do Campeonato Francês. O goleiro conquistou o título francês em 1937 e venceu a Copa da França em 1938.
O momento que resume perfeitamente a carreira de Jaguaré ocorreu em 1º de maio de 1938, na reta final do Campeonato Francês. O Marselha enfrentava o Sète, uma equipe do sul da França, em uma disputa que decidiria o segundo e o terceiro colocados. Abaixo está o relato do jogo, disponível no jornal “L’Équipe”.
O árbitro Roger Conrié marcou três pênaltis na partida. No único pênalti a favor do Marselha, na ausência dos principais batedores, o capitão Ferdi Bruhin – que não quis cobrar – apontou para o goleiro brasileiro. Jaguaré chegou com os braços balançando e um sorriso no rosto, sem se preocupar. Ele indicou o lado em que o goleiro adversário deveria pular e finalizou lá, enquanto o goleiro foi para o outro lado e sofreu o gol de empate. Até hoje, Jaguaré é apontado como o único goleiro do Marselha a marcar no Campeonato Francês.
No mesmo jogo, ocorreram dois pênaltis a favor da equipe de Sète. Jaguaré provocou pessoalmente os jogadores responsáveis pelas cobranças. Primeiro, ele lembrou ao batedor, o espanhol Balmanya, que a Guerra Civil Espanhola estava acontecendo. O adversário chutou para fora. Depois, o jovem Danzelle também caiu na provocação do goleiro, que defendeu a cobrança. O jogo terminou empatado em 1 a 1, o que não foi bom para nenhuma das equipes, já que o Sochaux se sagrou campeão.
Em 2019, o Olympique de Marselha realizou uma votação em seu site oficial para eleger o maior goleiro da história do clube, e Jaguaré figurou entre as cinco opções, junto com Barthez, campeão mundial em 1998.
Fim de carreira e morte na miséria
Jaguaré deixou o Marselha como um ídolo, mas após uma passagem discreta pelo Académico de Viseu, em Portugal, ele retornou ao Brasil pobre, após gastar todo o dinheiro que havia conquistado na Europa. O goleiro tentou continuar sua carreira no São Cristóvão, mas não obteve sucesso. Ele voltou às origens no cais do porto para trabalhar novamente com sacos de carga.
Depois de um período de desaparecimento, Jaguaré foi encontrado morto e indigente em agosto de 1946, em Franco da Rocha, no interior de São Paulo. A notícia da morte de Jaguaré foi destaque na maioria dos jornais da época.
O fim da vida de Jaguaré não teve o mesmo destaque de sua carreira vitoriosa, nem a alegria que sempre o acompanhou. Segundo relatos da época, o Vasco tentou trazer o corpo de volta ao Rio de Janeiro, para que ele fosse enterrado no local onde nasceu e se tornou uma lenda, atendendo ao desejo de Jaguaré.
“Jaguaré nasceu vascaíno e só deixará o Vasco quando for para o túmulo. E quando morrer, ele pedirá ao Almirante (título honorário concedido ao presidente do Vasco da Gama) que lhe arranje um cantinho aqui, no estádio”, disse Jaguaré, de acordo com Geraldo, em um obituário publicado no Jornal dos Sports em 1946.
Fonte: ge