
Em 1945, o Rio de Janeiro vivia um carnaval único, que fugia do comum na sua história. No meio da Segunda Guerra Mundial, o gramado de São Januário deixou os jogadores e recebeu passistas, foliões e grandiosas alegorias, presenciando a Portela conquistar seu quinto título consecutivo de carnaval.
No entanto, uma tragédia manchou a festividade naquele ano. Entre os confetes e serpentinas, o sambista Matinada foi brutalmente assassinado com uma facada no gramado.
Esse crime reverberou pela cidade e foi eternizado na famosa canção de Paulinho da Viola e Aldir Blanc, ‘Botafogo, Chão De Estrelas’. Um episódio que uniu o brilho do carnaval e a sombra da violência, marcado na memória do carnaval carioca.
Para o jornalista e pesquisador da cultura popular, Fábio Fabato, o carnaval de 1945 é um exemplo claro de uma crônica carioca, que misturou a paixão do povo pelo samba e futebol e uma tragédia que abalou a cidade.
“Matinada foi assassinado no campo do Vasco, durante a folia. Esse fato gerou até uma crônica da Rachel de Queiroz (…) Esse episódio superou a própria festa”, ressalta.
“Entrou para a crônica de costumes da cidade. Uma cidade que vive entre crimes, carnaval e futebol, e todos esses elementos se entrelaçam. Esse carnaval tem a essência que o Rio de Janeiro carrega até hoje. É uma tragédia que eclipsa o próprio carnaval. As pessoas falam muito mais sobre isso do que sobre o título da Portela”, acrescentou Fábio Fabato.
*Leia mais sobre o crime no fim da reportagem.
Desfiles no estádio
O ano de 1945 marcou um período ímpar para o Rio de Janeiro. Na época, sendo a capital do Brasil, a cidade enfrentava os efeitos da participação do país na Segunda Guerra Mundial, que começou em 1942, ao lado das nações aliadas contra os nazistas.
Entre os desafios da guerra, estavam as precauções contra bombardeios e o corte parcial ou total da energia elétrica na cidade.
Diante desse cenário, as festividades do carnaval de 1945 não tinham um clima favorável. A imprensa da época se posicionou contra, pressionando o governo a não promover a festa como nos anos anteriores.
Além do conflito, outro fator decisivo para que os desfiles das escolas de samba ocorressem em São Januário foi a destruição da Praça Onze.
Nesse espaço funcionava o Centro Religioso da Tia Ciata, um reduto de artistas e considerado o berço do samba carioca. A demolição da praça provocou revolta nos sambistas.
“A escolha de São Januário se deu porque era o grande palco esportivo e político da cidade. O Maracanã ainda não existia. (…) Em 1945, as escolas de samba eram vistas como algo secundário e, por isso, os desfiles foram transferidos para lá, influenciados pelo contexto bélico e pela destruição da Praça Onze”, explicou Fabato.
Nos anos 40, as escolas de samba lutavam por reconhecimento. Os desfiles ainda não eram o principal atrativo do carnaval da cidade.
Os ranchos – grupos organizados que faziam suas apresentações com alegorias e bandas de sopros – e as grandes sociedades do carnaval, que já desfilavam na Avenida Rio Branco, não receberam autorização do governo para participar em 1945.
São Januário em 1927 — Foto: Reprodução site oficial do Vasco da Gama / Centro de Memória CRVG
“Nesse período (1945), existiam muitas ligas distintas. A organização se tornou mais efetiva a partir da metade da década de 1950. (…) Naquele ano, a festa ainda era considerada pequena na cidade. As grandes sociedades e os desfiles de ranchos ainda eram as principais atrações do carnaval”, destacou Fabato.
Assim, São Januário foi escolhido. O estádio era o único grande espaço disponível no Rio de Janeiro e já havia sido usado para eventos cívicos. Em 1943, foi palco de um desfile não-oficial das escolas de samba, promovido pela primeira-dama do Brasil, Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas.
Portela garante seu reinado
Com o Estádio de São Januário garantido para os desfiles, a Liga de Defesa Nacional (LDN) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) ficaram responsáveis pela organização do evento.
Quatro escolas conseguiram financiar seus desfiles e confirmaram participação na disputa no campo do Vasco. As agremiações que marcaram presença foram:
- Portela;
- Mangueira;
- Depois Eu Digo (do Morro do Salgueiro);
- e Cada Ano Sai Melhor (do Morro do São Carlos).
A Portela era a grande favorita, acumulando vitórias desde 1941, com uma sequência de triumfos que durou até 1947.
A Mangueira também já era uma escola forte, tendo faturado um tricampeonato entre 1932 e 1934, além do título de 1940. Contudo, a equipe Verde e Rosa havia enfrentado três vices consecutivos em 1943, 1944 e 1945.
Conhecida como o “Expresso da Vitória do samba”, a Portela garantiu a taça naquele ano com o samba “Brasil Glorioso”, de Ventura.
Vale lembrar que, em 1945, todas as escolas tiveram que desenvolver enredos com temas patrióticos, refletindo o clima nacionalista gerado pela participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Versões de um crime cruel
“Um crime que entrou para a história do Rio”. Assim o pesquisador descreve a morte do sambista Matinada durante os desfiles do carnaval de 1945.
Como a folia daquele ano não estava na mira da imprensa, os desfiles acabaram não sendo registrados. Isso torna difícil juntar informações sobre o que realmente ocorreu naquele fatídico dia.
Enquanto os desfiles não recebiam muita atenção, a morte de um sambista em plena São Januário tomou as páginas dos jornais que cobriam o noticiário policial na época.
“O crime fez história no jornalismo carioca. Mesmo com poucos registros, sabemos que o assassinato ocorreu dentro de São Januário. A narrativa se baseia muito em memórias orais, embora haja escassez de registros jornalísticos”, explica Fabato.
Uma versão, segundo Fábio Fabato, diz que uma briga entre os sambistas das escolas Depois Eu Digo e Cada Ano Sai Melhor resultou na morte de Matinada, que pertencia à escola do Morro do Salgueiro.
A confusão realmente aconteceu e resultou em uma verdadeira batalha entre muitos indivíduos. Para Fabato, a questão é se Matinada foi morto devido à briga ou se sua morte provocou a luta generalizada.
“O que de fato ocorreu foi uma briga generalizada entre a Depois Eu Digo, uma escola do Morro do Salgueiro, e a Cada Ano Sai Melhor, do Morro do São Carlos”, lembrou o pesquisador.
O Jornal do Brasil, na sua edição de 6 de fevereiro de 1945, relatou que, além de Matinada, houve 14 feridos dentro de São Januário. A reportagem ainda mencionou que diversas prisões foram efetuadas pela polícia.
Após a confusão, conforme a matéria, José de Oliveira, o Matinada, de apenas 20 anos e da comunidade do Morro do Salgueiro, foi identificado. A polícia, no entanto, não sabia qual foi o motivo do conflito, apesar das várias versões que circulavam.
Uma cantada fatal
Ninguém tem certeza do que realmente sucedeu, mas uma das versões sobre o estopim da briga afirma que uma cantada feita por um integrante da Depois Eu Digo para uma porta-bandeira da Cada Ano Sai Melhor foi o gatilho para a confusão.
Essa versão traz dois detalhes que podem ser cruciais para o desfecho do caso. De acordo com Fabato, um homem chamado Levi teria sido o responsável pela cantada e, ao ser confrontado, teria mentido seu nome e afirmado que era Matinada.
“Uma das versões fala sobre uma desavença causada por uma cantada. Um mestre-sala chamado Levi fez uma abordagem a uma porta-bandeira do São Carlos. Ele não foi o alvo da confusão porque por engano usou o nome de Matinada. Quando alguém indagou: ‘Quem é Matinada?’, essa pessoa foi e apunhalou o verdadeiro Matinada”.
“Outra versão sugere que a confusão chegou a um ponto crítico, o que era comum naquela época, e no calor da briga, alguém espetou Matinada”, relatou Fabato.
Acusado provou inocência
Recorte de jornal da época mostra Matinada (a direita). — Foto: Reprodução
Como era de se esperar, o crime atraiu a atenção e requeria investigação. Inicialmente, as autoridades prenderam o mestre-sala Avelino dos Santos, conhecido como Bicho Novo.
Entretanto, Bicho Novo foi liberado após a polícia perceber que ele não estava presente em São Januário durante a confusão. Sebastião Bezerra Resende, o Dedé, também foi detido como suspeito.
A renomada escritora Rachel de Queiroz publicou uma crônica na época mencionando a morte de Matinada e referindo-se a uma lenda que circulava.
“Abro agora um parêntese para reverenciar Matinada, mestre de canto de uma escola de samba que encontrou a morte aqui no Rio, apunhalado na concentração do estádio do Vasco. Dizem que na Ilha já rola uma lenda maravilhosa: que Matinada morreu, mas deixou doze no chão, com o corte da sua navalha”, escreveu Rachel.
Inspiração para Paulinho da Viola
Paulinho da Viola, vascaíno e portelense, foi profundamente impactado pelo carnaval de 1945, mesmo tendo apenas três anos na época.
Pesquisadores afirmam que o sambista, hoje com 83 anos, estava em São Januário naquele dia e ouviu de seu pai as histórias sobre a grande confusão que resultou na morte de Matinada.
“O que realmente ocorreu é que Paulinho da Viola, ainda uma criança, estava em São Januário nesse momento, e obteve informações sobre a confusão através de seu pai. Dizem que isso o marcou e anos depois, junto com Aldir Blanc, ele criou o samba”, relata.
Trinta e três anos mais tarde, em 1978, Paulinho da Viola e Aldir Blanc escreveram juntos a canção ‘Botafogo, Chão de Estrelas’, uma letra repleta de metáforas sobre o bairro de Botafogo, na Zona Sul. A música aborda um lugar de contrastes entre beleza e decadência, sonhos e realidade.
Paulinho da Viola em foto de novembro de 1978 — Foto: Acervo Estadão Conteúdo
A trechos da canção que se refere à morte de Matinada durante os desfiles de 1945 diz: “Morreu assassinado o Matinada / Nas confusões que vestem fevereiro”.
Paulinho e Aldir fazem uma crítica social ao sugerir que as “confusões” (violência, desigualdade, tensões) são os trajes que se repetem todo ano.
Sobre Matinada, sua morte trágica simboliza a violência urbana e o descaso com as vidas periféricas, algo que Aldir Blanc frequentemente denunciava em suas letras.
Matinada é na música uma vítima simbólica de um sistema que marginaliza e extermina, enquanto a sociedade se distrai com a folia de fevereiro.
Veja a letra completa de ‘Botafogo, Chão de Estrelas’:
Quando
O paraíso das cabrochas
Do seu Oswaldo Tintureiro
Desfilou e abriu o mar
O mar
Que também é quizumbeiro
Morreu assassinado o Matinada
Nas confusões que vestem fevereiro
Botafogo saiu pelo sem rival
Brincou com os gaviões
E do funil eu era fã
Juntos, mar e fantasia
Ganhando prêmios do Correio da Manhã
Mauro Duarte
Engenho e arte
Como disse o cantor dos navegantes
Vindo à vela da rua Marquês de Abrantes
Com Pica-Fumo, Ivo e Zorba Devagar
Miúdo, Eli Campos e Jair Cubano
Alcides, no cantinho da fofoca nacional
Figuras nobres do imaginário
Do país do carnaval
Figuras nobres do imaginário
Do país do carnaval
Depois, com Niltinho Tristeza
O samba se uniu para brilhar
Ganhou paradas e foi aquela beleza
Tanto fazia ser de Botafogo ou do Humaitá
Pra quem chegar
Pra quem chegar agora
E ouvir a minha história
Meu samba tem
A honra de anunciar
Sou a estrela solitária
Botando fogo
No crepom azul do mar
Fonte: g1