Memórias Recheadas de Saudade
Fellipe Bastos
Ex-atleta
Nov 28, 2024
Tudo que fui e vivi na minha trajetória está aqui.
Nestas paredes.
Tudo, tudo, tudo.
Dá uma olhada. O futebol, pra mim, se resume a esse monte de imagens penduradas nas paredes. E como elas queimam… Ô! Que saudade. Às vezes, evito entrar nesse lugar.
Como parei de jogar há pouco tempo, é desafiador olhar pra minha carreira sem me emocionar. Mas não tem como. De vez em quando venho aqui, olho as fotos, lembro dos amigos, dos treinos, das viagens, da torcida cantando e balançando bandeiras, dos estádios lotados, do pagode no ônibus, daquele frio na barriga antes das partidas…
Pô, aí eu choro igual criança. Saudade dói, viu. Mas é bom que seja assim. Pior do que sentir saudade é não ter nada do que lembrar, não é mesmo? Nesse aspecto, sou um sortudo, graças a Deus: o futebol me proporcionou um baú cheio de saudades.
Olha essa aqui. Eu e meu irmão em nossa casa na Penha, subúrbio do Rio, onde nascemos e fomos super felizes. Os dois sentados no tapete, colados na TV, e ao lado a bola que meu pai nos deu de presente.
Brasil x Camarões, Copa de 94.
Acho que essa é a memória mais remota que tenho: o Dunga desarmando no meio de campo, passando pro Romário, ele cercado por três zagueiros imensos, meu coração na boca, o toque sutil pro gol e aquela alegria que parecia não ter fim. Eu tinha 4 anos e nem sabia falar direito o nome do Baixinho. Mas ele foi meu primeiro grande ídolo. E era lei: naquela Copa, após os jogos do Brasil, a gente descia pra jogar bola numa quadra perto de casa e eu era o Romário. Meus amigos podiam ser o Bebeto, o Zinho, o Jorginho, quem quisessem. Mas eu era o Romário.
Foi nessa quadra que me viram jogar e pediram pro meu pai me levar pro Florença, um time de futebol de salão do bairro. Disseram que eu tinha uma boa coordenação, era dedicado, entrava firme em todos os lances, e que eu poderia ir treinar no clube se quisesse. E assim comecei.
Depois do Florença, passei pelo Fluminense, uma brevíssima passagem, e aos 10 anos cheguei no Botafogo, onde fiz toda a minha base. Com 16 anos, olha só… Nesse dia, joguei minha primeira partida como profissional. A foto tá meio desgastada, mas dá pra ver bem: camisa do Botafogo, sorriso no rosto e esperança no coração. O primeiro ano como profissional foi inesquecível. Fui campeão da Copa das Confederações sub-17 com a Seleção, disputei o Pan-Americano no meu quintal, e ainda curtia a sensação de as coisas boas acontecendo rápido quando surgiu uma proposta do PSV Eindhoven.
Mas na Holanda, só consegui bater foto de treino na neve. Vê? Dezembro de 2007. Que frio, irmão, não vou mentir. Abaixo de zero. Permanecei lá por dez dias, já que não chegamos a um acordo satisfatório. Conheci o Fágner e o Cássio, que reencontraria naquela Libertadores de 2012, Vasco x Corinthians, e saí de lá.
Próxima parada: Lisboa. Benfica. E aí, sim, tenho muitas fotos, embora as lembranças que trazem sejam meio misturadas, uma combinação de alegria, arrependimento e aprendizado.
A que mais gosto é essa aqui: 18 anos, com cabelo ainda, bem moleque. Dia 23 de maio de 2009. Essa foto é da comemoração do golaço que fiz do meio da rua contra o Belenenses. Até hoje lembro: 36 metros de distância, um tiro no ângulo. Chorei muito nesse dia, porque estava passando por um momento difícil que me custou a permanência no Benfica. Por isso saí assim na foto, ajoelhado após o gol, com as mãos cobrindo o rosto num gesto de incredulidade e desforra.
Um ano antes, era um dos favoritos do Quique Flores, o treinador. Mesmo sem jogar todas as partidas, sabia que ele confiava em mim. Mas um dia, em uma partida contra o Rio Ave, o craque Pablo Aimar me pediu pra buscar uma chuteira no vestiário, que ele precisava trocar. Eu fui e acabei esquecendo minha camisa de jogo lá. Quando voltei, o titular da minha posição, Carlos Martins, havia desmaiado após um choque. O Quique me chamou pra entrar e… Meu Deus do céu! Cadê minha camisa?
Barrington Coombs/Getty Images
Na Europa, eles levam muito a sério essa questão de responsabilidade. Especialmente se você é jovem. Ficam sempre de olho pra ver se você é “profissional”. Até aquele momento, eu vinha indo bem, mas esquecer a camisa no vestiário e não estar pronto quando o treinador precisou… Isso foi um grande erro e, de certa forma, encurtou minha passagem pelo futebol europeu.
Fiquei mal. Porque eu nunca fui irresponsável; pelo contrário, sempre fui certinho, nunca faltei a um treino nem fiz corpo mole. Mas essa situação quebrou a confiança: do treinador, do clube e a minha também. Acabei emprestado pro Belenenses, depois pro Servette, da Suíça, e quando retornei ao Benfica, só não foi pior porque fiz aquele golaço.
Além de tudo, a minha esposa teve tuberculose e estava em tratamento no Brasil. Fiquei sozinho em Lisboa, me afundando cada vez mais. Minha cabeça virou uma confusão. Não sabia se parava de jogar, pra onde iria, se tentava recuperar minha confiança… Fiquei decepcionado comigo mesmo e com o futebol.
No fim da temporada, vim pro Brasil de férias sem enxergar uma saída. Eu precisava recuperar a crença em mim e seguir em frente. Em casa, meu pai dizia pra eu acalmar o espírito, enquanto minha mãe rezava. Poucas coisas poderiam me tirar daquele sofrimento e mostrar a luz. Mas uma delas, a melhor de todas, aconteceu.
O Vasco queria me contratar.
O VASCO, cara!
O Vasco do Romário, do Edmundo, do Felipe, do Juninho Pernambucano, do Pedrinho, de todos os meus ídolos.
O Vasco do meu coração!
Sam Robles/The Players’ Tribune
Só havia um lugar no mundo onde eu poderia me reencontrar, recuperar minha confiança e a vontade de jogar. E esse lugar era São Januário.
Quando cheguei, passei dez partidas sem ser convocado. Eu só treinava e nada de ir pro jogo. Mas mantive a cabeça erguida, confiante. Era o Vasco, pô! Minha hora ia chegar.
Essa foto aqui é do dia que ela chegou. Rapá, como essa camisa preta do Vasco é bonita, né? Coisa linda. Isso foi no jogo contra o Ceará, no Castelão. Minha estreia. Eu não estava na lista para essa partida. Já ia subir pra arquibancada pra assistir quando alguém sentiu uma lesão no aquecimento e o PC Gusmão, treinador na época, me chamou.
Fiquei no banco falando pra mim mesmo: “Se eu entrar, tenho que fazer algo diferente, porque esse pode ser o jogo mais importante da minha vida, que vai determinar meu futuro”. Entrei faltando nove minutos. Estávamos vencendo por 1 a 0 e o Ceará tentando o empate pra não perder a invencibilidade em casa.
Falta na intermediária.
Opa! Era a minha chance.
Acho que fui meio ousado, porque entrei na frente de todo mundo, com a moral lá em cima: “Deixa comigo que eu cobro essa, galera”. Bati em cima da barreira, mas a bola voltou pra mim. Então chutei de novo.
Gol!
Eu chamo esse de o “gol do renascimento”. Olha minha expressão na foto. Cara de quem tirou um peso enorme das costas.
Ô saudade… Era um grupo incrível, esse que o Vasco começou a formar ali, em 2010. E o Diego Souza foi, em certo momento, o grande diferencial. Não só pelo seu talento em campo, mas pelo papel que assumiu, de ser o elo entre os mais jovens como eu, Dedé, Rômulo, Fágner, e os mais experientes como Felipe, Éder Luiz, Ramon, Eduardo Costa, Prass.
Desse caldo bem temperado saiu o título da Copa do Brasil de 2011. Claro que tenho foto pra lembrar. Essa aqui: Éder Luiz, Alecsandro e Diego Souza formam o Trem Bala da Colina após nosso segundo gol contra o Avaí, na semifinal.
No jogo de ida, em São Januário, empatamos em 1 a 1. Na volta, na Ressacada, nosso treinador, Ricardo Gomes, montou o time no vestiário, escalou os titulares e se calou. Sem conversa, sem nada, apenas entregou a cada jogador um panfleto que recolheu assim que descemos do ônibus. Estava escrito assim: “Para o torcedor do Avaí, passagem, hospedagem e ingresso da final”.
Nós ficamos mordidos. Entramos em campo dispostos a “destruir” o Avaí. E confiantes que faríamos isso. Com 15 minutos, já estávamos 2 a 0 à frente do Vasco. Depois, vencemos o Coritiba na final e quem levou a passagem fomos nós. Uma passagem pra Libertadores! E tudo isso vestindo a camisa do meu time de infância… Você consegue imaginar como eu me sentia?
Eu não guardo nenhum sentimento ruim em relação àquela Libertadores, sabia?
É claro que é decepcionante ser eliminado, mas, ao final do jogo contra o Corinthians, a sensação era de missão cumprida e, mais do que isso, de plenitude por fazer parte de um grupo histórico do Vasco.
Quando pulei a placa de publicidade e fui abraçar o Diego Souza, era essa sensação que eu queria transmitir a ele, porque sabia como ele estava se sentindo. O cara não costumava perder aquele tipo de gol. “Levanta a cabeça, irmão. Nós lutamos. O Vasco é um time de guerreiros. Entramos pra história de um dos maiores clubes do Brasil e jamais seremos esquecidos”, disse a ele quando o abracei.
No ano seguinte, deixei São Januário. Passei pela Ponte Preta, onde disputei uma final de Sul-Americana, e pelo Grêmio, onde conheci um jogador de 40 anos que é o maior exemplo de profissionalismo que já vi: Zé Roberto.
Pra mim, ele é o grande trabalhador do futebol. O Zé Roberto, treinando e jogando como se tivesse metade da idade que tinha, simbolizava todo o respeito que esse esporte maravilhoso merece. Conviver com o Zé no Grêmio me ajudou a afastar os fantasmas que me assombravam desde o episódio da camisa esquecida no Benfica. Aqui está uma foto nossa juntos. Obrigado pelo exemplo, Zé!
Daí pulamos pra 2015. Foto minha no deserto perto de Al Ain, nos Emirados Árabes. Joguei lá por duas temporadas. Isso me trouxe liberdade financeira. Um país incrível, fui superbem tratado, até disputamos uma final da Champions League da Ásia. Mas sentia que faltava algo. Faltava a adrenalina, aquele gostinho de alta competitividade, a torcida cobrando, a imprensa na pressão. Isso sempre foi combustível pra mim. Um pouco de confusão. Mas não é a cultura deles. Perder e achar que tudo bem… pra mim não dá. A derrota machuca e a dor precisa ser sentida.
Bom, se era confusão e pressão que eu procurava, em 2017 caí no lugar certo: no Corinthians.
Ó essa foto. Eu, Fágner e Cássio. Os três juntos novamente, dez anos depois do nosso breve encontro no PSV. Estamos sorrindo, mas a atmosfera quando cheguei estava bem estranha. No ano anterior, a situação havia sido horrorosa. Tite havia saído e o técnico era um novato desconhecido: Fábio Carille.
Diziam que o Corinthians era a “quarta força” do Campeonato Paulista e que, no Brasileiro, “brigaria pra não cair”. Lá dentro, ninguém teve coragem de contestar. Só nos restava trabalhar. E, pra resumir a história, aqui estão duas fotos nossas levantando os troféus, um do Campeonato Paulista e outro do Campeonato Brasileiro. Um trabalho impecável do Carille e da rapaziada que estava lá. Jô, Rodriguinho, Jadson, Romero…
Quando o Corinthians engrenou no Brasileiro, dizíamos que nosso maior adversário era o time reserva. Os treinos pegavam fogo. Competição saudável, mas feroz. Todo mundo sabia que, se vacilasse, alguém do banco tomava seu lugar num piscar de olhos. O ponto alto pra mim foi este dia aqui. A foto parece de um jogo, mas é um treino.
Que loucura! Foi assim… Na semana que enfrentaríamos o Palmeiras, marcaram um treino na Arena com a presença da torcida. Eu nunca tinha visto isso. Quarenta mil pessoas no treino! Com bandeira, fumaça, batuque, cantoria e tudo que tinha direito. Quarenta mil! Eu olhava e pensava: Rapá, se hoje tá assim, o que essa torcida vai fazer amanhã?! Eles são diferentes, né? Coisa linda demais.
No domingo, vencemos por 3 a 2, abrimos oito pontos na liderança e terminamos aquele fim de semana inesquecível com a confiança de que seríamos campeões. É Coringão… Meu título de campeão brasileiro tem um lugar de honra na minha parede de saudades.
Depois do Corinthians fui pro Sport. Uma temporada ruim, onde fomos rebaixados, e voltei pro Vasco, onde vivi a experiência mais grandiosa que o futebol me ofereceu. Foi quando realmente entendi a dimensão desse esporte, como ele penetra em nossas vidas e toma conta de nossa alma.
Se você ama futebol e não é solidário, das duas uma: ou está mentindo ou não entendeu nada. Porque muitas vezes, o jogo é um coadjuvante: ele serve pra te ajudar a fazer o que precisa ser feito.
Tô falando da pandemia de Covid, que começou em março de 2020. O Vasco sempre enfrentou problemas com salários atrasados, todos sabemos. Os jogadores suportam a pressão, mas e os funcionários do clube numa situação dessas? Como fica a Barreira, a comunidade ao redor de São Januário que depende dos jogos no estádio e da vinda dos torcedores?
No início da pandemia, o futebol parou. Quando voltou, voltou sem público. Eu olhava ao meu redor e me sentia angustiado. Então decidi fazer o que era certo. Olha a foto. Levei duas toneladas de alimentos pra Barreira. Pros funcionários do Vasco, que cuidam da gente como se fossem filhos deles, paguei contas, fiz compras, emprestei cartão de crédito, ajudando como pude. E eu não falo isso pra me gabar, não.
Sam Robles/The Players’ Tribune
Na verdade, eu acho triste viver num país onde a maioria das pessoas precisa de ajuda pra sobreviver. Eu sou da Penha, família humilde, meus pais sempre nos criaram com dificuldade. Então não tem o que discutir. Eu me identifiquei com quem precisava e achei que o certo era estender a mão. As fotos dessa época não trazem saudosismo algum pra mim. Mas elas também fazem parte da minha história.
Após essa segunda passagem pelo Vasco, joguei no Goiás, já pensando em parar, mas ainda sem coragem, e depois fui pro Amazonas, onde finalmente encerrei minha carreira em maio deste ano. Assim completei minha jornada por todas as regiões do Brasil — joguei no Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte — e minha preciosa galeria de fotos.
Outro dia, perdi o sono, vim pra cá no meio da noite e comecei a refletir. Imaginei que mostrava e explicava foto por foto pra mim mesmo quando criança. O Fellipinho da Penha estava ali, com uma bola debaixo do braço, com os olhos arregalados, dizendo assim: “É, tio… Você realizou todos os meus sonhos. Faltou só jogar no Real Madrid, mas, de resto, fez tudo. Pode voltar pra cama e dormir tranquilo”.
Fonte: The Player’s Tribune
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