No dia 12 de agosto de 2023, o Vasco terá um momento especial. Há um século, em 1923, o clube conquistou pela primeira vez o Campeonato Carioca. Além do título, a luta para incluir negros e trabalhadores em um esporte até então elitista é motivo de orgulho para a torcida.
Conhecidos como “Jogadores de Preto”, a equipe marcou a história do Vasco na luta contra a discriminação racial e social no esporte. A maioria dos jogadores era composta por negros e pessoas em situação de pobreza. Eles fizeram uma campanha espetacular com 11 vitórias, dois empates e apenas uma derrota.
O Vasco era originalmente um clube de remo e começou a jogar futebol em 1915. No ano seguinte, a equipe se juntou à Liga Metropolitana para competir na Terceira Divisão. Depois de um início difícil, o clube encontrou apoio em outras ligas, especialmente nos subúrbios do Rio de Janeiro, e começou a contratar jogadores de equipes menores.
Em 1920, o Vasco contratou seus dois primeiros Jogadores de Preto, que seriam campeões em 1923: Arthur, do Hellenico Athletico Club, e Torterolli, do Carioca Football Club. Em 1922, o time venceu a Série B do estadual e subiu para a elite na temporada seguinte. Logo de cara, derrotaram os três principais rivais no primeiro turno e iniciaram a trajetória rumo ao título.
Luta contra o preconceito
A ótima campanha do Vasco incomodou os rivais, que começaram a impor obstáculos para manter os jogadores no clube. O primeiro deles foi a exigência de alfabetização pela Liga Metropolitana, como critério para participar do campeonato.
Para ajudar os jogadores a preencherem os dados necessários e assinarem os formulários de inscrição, o Vasco contou com a ajuda do associado Custódio Moura. Ele era bibliotecário do clube e ensinava os jogadores a ler e escrever.
Em março de 1924, clubes rivais abandonaram a Liga Metropolitana e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA). O Vasco foi convidado a se juntar à nova liga, com a condição de excluir 12 jogadores, sendo sete do time principal e cinco do time reserva. A maioria deles eram negros e vindos de camadas populares da sociedade.
No dia 7 de abril de 1924, o presidente do Vasco, José Augusto Prestes, redigiu e assinou uma resposta histórica no clube. O Vasco decidiu não participar da AMEA e optou por manter seus jogadores, marcando seu nome na história.
Nelson
Nelson da Conceição nasceu em 12 de agosto de 1898 em Nova Friburgo, Rio de Janeiro. Ele foi taxista e depois trabalhou na Casa Alberto. Foi o primeiro goleiro negro do Vasco, da Seleção Brasileira e da Seleção Carioca. Ele veio do Engenho de Dentro A.C. e teve que lidar com ataques racistas e acusações de analfabetismo.
Apesar de ser um homem negro de uma classe social baixa, ele se tornou um dos maiores ídolos do Vasco. Ganhou três títulos pelo clube em 1922, 1923 e 1924, e foi capitão da equipe. Ele também participou da inauguração do estádio de São Januário, em 1927. Mesmo após sair do Vasco, Nelson permaneceu como sócio do clube. O título foi conquistado no dia do seu aniversário.
Em 1923, Nelson foi convocado para jogar o Campeonato Sul-Americano de Futebol (Copa América) no Uruguai. A sua excelente performance esportiva impediu que a AMEA o forçasse a sair do clube.
Leitão
Albanito Nascimento nasceu em 3 de fevereiro de 1898 em Paracambi, Rio de Janeiro. Trabalhava na C. Machado & Cia. O zagueiro, conhecido como Leitão, foi titular em todos os jogos da competição. Ele veio do Bangu, tinha pouco estudo e era de uma classe social baixa, por isso a AMEA tentou excluí-lo.
Mingote
Domingos Vicente Passini nasceu em 26 de maio de 1902 no Rio de Janeiro. Trabalhava na Casa Retroz. Conhecido como Mingote, era jogador do Pereira Passos Football Club e chegou ao Vasco em 1921.
Ele foi titular na conquista da Série B do campeonato em 1922 e perdeu a posição para Claudio Destri durante o primeiro turno de 1923. No segundo turno, voltou a ser titular na zaga ao lado de Leitão, após Destri se machucar durante um treino. Mesmo sendo branco e de uma condição social baixa, ele escapou da exclusão da AMEA.
Nicolino
João Baptista Soares nasceu em Dom Pedrito, Rio Grande do Sul. Trabalhava na Anglo Mexican Petroleum Company Ltda. Ele era conhecido como Nicolino e veio do Andarahy. Foi responsável pelo lado direito do campo, uma função similar à atual posição de lateral-direito. Ele era mais um excelente jogador negro dos Jogadores de Preto, e a AMEA também quis excluí-lo.
Arthur
Arthur Medeiros Ferreira nasceu em 27 de março de 1900 no Rio de Janeiro. Trabalhava como mecânico. Ele estreou no Hellênico em 1917 e chegou ao Vasco em 1920. Era conhecido por sua habilidade defensiva e ofensiva. Trabalhando como mecânico na Fundição Progresso, Arthur não cumpria os “padrões morais” para jogar futebol, de acordo com as diretrizes da AMEA.
Torterolli
Nicomedes Conceição nasceu em 24 de março de 1899 em Barra do Piraí, Rio de Janeiro. Trabalhava na Companhia Singer. Ele marcou o primeiro gol da campanha do título em 1923. Conhecido como Torterolli, ele veio do Carioca Football Club e se destacou pelas ótimas atuações, sendo apelidado de “Príncipe dos Passes”.
Torterolli era um meia-direita criativo e também jogou pela seleção brasileira, por isso a AMEA não pediu para excluí-lo. Ele foi titular do Vasco por várias temporadas.
Ceci
Sylvio Moreira nasceu em 7 de agosto de 1897 em Niterói, Rio de Janeiro. Trabalhava na T. Bastos & Cia. Conhecido como Ceci, estreou no Villa Izabel em 1917, um dos rivais do Vasco nas divisões inferiores. Ele chegou ao clube para disputar o Carioca de 1923 e permaneceu até o ano seguinte.
Jogando atrás dos atacantes, ao lado esquerdo juntamente com Torterolli, Ceci também foi um craque do Vasco. Ele não era tão construtor no meio-campo como outros jogadores, mas sabia marcar muitos gols. Seus oito gols o tornaram artilheiro do campeonato ao lado de Arlindo. Ele é um dos jogadores que a AMEA pediu que o Vasco excluísse da equipe.
Negrito
Alípio Marins nasceu em 1898 no Rio de Janeiro e trabalhava na Fábrica de Tintas Transatlântica. Ele era conhecido como Negrito por causa da cor de seus cabelos. Jogou como ponta-esquerda dos Jogadores de Preto. Era um atacante baixo e veloz. Apesar de ser branco, de uma situação social baixa e ter dificuldades para ler e escrever, a AMEA solicitou sua exclusão. Negrito se tornou Benemérito do clube.
Ele permaneceu no Vasco por muitos anos. Em 21 de abril de 1927, ele foi o primeiro jogador vascaíno a marcar um gol em São Januário, no jogo em que o Vasco foi derrotado por 5 a 3 para o Santos na inauguração do estádio.
Paschoal
Paschoal Cinelli nasceu em 21 de abril de 1900 no Rio de Janeiro. Trabalhava na Casa Retroz. Ele foi apelidado de “Trem de Luxo” dos Jogadores de Preto por causa de sua velocidade. Ele dedicou sua vida ao clube e foi ponta-direita nos três primeiros títulos cariocas do Vasco, em 1923, 1924 e 1929.
Descoberto jogando nas ruas do Cais do Porto, Paschoal veio do Sport Club Rio de Janeiro para o Vasco. Ele também foi titular da seleção brasileira por muitos anos, por isso não teve sua exclusão solicitada. Após encerrar sua carreira de jogador, ele trabalhou como funcionário do clube no departamento de futebol e como diretor de esportes terrestres. Ele se tornou Benemérito do Vasco.
Paschoal adotou o sobrenome Silva porque, segundo Mario Filho em “O Negro no Futebol Brasileiro”, ele aprendeu a assinar seu nome apenas depois de adotar um sobrenome mais fácil.
Arlindo
Arlindo Corrêa Pacheco nasceu em 4 de julho de 1898 no Rio de Janeiro. Trabalhava na Companhia de Seguros Equitativa. Ele foi artilheiro do Vasco ao lado de Ceci, marcando seu primeiro gol na campanha do título em uma vitória importante sobre o Fluminense por 1 a 0, no primeiro turno.
Arlindo não ficou muito tempo no Vasco, pois era conhecido por trocar frequentemente de clube, o que lhe rendeu o apelido de “borboleta”. Ele jogou pelo Botafogo antes de chegar ao Vasco e também teve passagens por Villa Izabel e América. Logo após o Carioca, Arlindo saiu e não participou da Resposta Histórica de 1924, famosa resposta do Vasco à AMEA.
Bolão
Claudionor Corrêa nasceu em 26 de fevereiro de 1901 no Rio de Janeiro. Era auxiliar de despachante na Companhia Fábrica de Botões e Artefatos de Metal. Ele foi apelidado de Bolão e foi um dos principais jogadores daquela equipe. Ele era negro e trabalhava como estivador no Cais do Porto, o que exigia grande força física. Antes de chegar ao Vasco, ele também foi operário enquanto jogava pelo Bangu.
Bolão foi o centroavante do Vasco na conquista da Série B em 1922. Em 1923, ele foi recuado para o meio-campo com a chegada do atacante Arlindo e mostrou que além de saber marcar gols, também sabia propor o jogo e marcar os adversários. Ele foi acusado de ser analfabeto e foi mais um jogador impedido de jogar pelo campeonato da AMEA em 1924.
Ele continuou no Vasco após encerrar sua carreira como jogador. Tornou-se o segundo diretor de esportes terrestres do clube, recebeu o título de Benemérito e depois Grande Benemérito do Vasco.
Russinho
Moacyr de Siqueira Queiroz nasceu em 18 de dezembro de 1902. Trabalhava na Companhia Singer. Ele era conhecido como Russinho e veio do clube Andarahy. Ele interrompeu sua carreira devido a uma grave doença e retornou aos campos em 1923. No início do ano seguinte, foi contratado pelo Vasco aos 21 anos.
Russinho jogou pelo Vasco por 11 temporadas (1924-1934) e foi o quinto maior artilheiro do clube. Ele conquistou três Campeonatos Cariocas (1924, 1929 e 1934), entre outros títulos. Em 1930, ele foi eleito o melhor jogador de futebol brasileiro no Concurso Monroe. Ele também foi diretor de futebol, conselheiro e técnico interino (1938).
Russinho carregava o estigma de ter representado um clube de fábrica, mesmo sendo branco e de olhos claros, vindo de uma família de classe média. A Comissão Organizadora da AMEA pediu a sua exclusão.
Técnico Ramón Platero
À beira do campo, a tarefa de comandar o Vasco foi dada a um estrangeiro: o uruguaio Ramón Perdomo Platero. Ele chegou ao Brasil em 1919, após treinar a seleção do Uruguai no Campeonato Sul-Americano. Ele deixou uma boa impressão e foi contratado pelo Fluminense. Dois anos depois, se encontrava no Flamengo.
O treinador chegou ao Vasco no ano anterior ao histórico título, em 1922. Na época, o Vasco disputava a Série B do Campeonato Carioca, enquanto Ramón também treinava o seu maior rival, o Flamengo, que jogava a Primeira Divisão. Como tinha contrato com o Flamengo, Ramón se ofereceu para ajudar o Vasco a desenvolver o futebol. No ano seguinte, ele trocou o Flamengo pelo Vasco.
Ramón Platero conduziu o Vasco à Primeira Divisão e, em 1923, não pôde treinar as duas equipes que jogariam o mesmo campeonato. O Vasco ofereceu um salário maior e deu total liberdade ao uruguaio para implantar o seu estilo de jogo. Ele aceitou o desafio.
Ramón Platero ficou conhecido como o técnico que revolucionou a importância do condicionamento físico. Ele exigia que todos os jogadores corressem diariamente entre os bairros da Tijuca e Vila Isabel como aquecimento. No final do ano, o Vasco conquistou o título com viradas e gols no segundo tempo das partidas.
Fonte: Globo Esporte